Uma das vantagens de calar a boca e ouvir é que escutamos coisas muito interessantes, ditas sem papas na língua, com erros, acertos, coisas boas e más, na “lata”.
Anteontem, na praia, tive oportunidade de “escutar” um rapaz por volta de seus 25 anos explicando uma série de visões, passadas por um visitante Iraniano à sua casa, sobre por que o Irã tem razão e os EUA não o tem. Muito interessante, pois o rapaz parece não apenas ter ouvido cuidadosamente a visão do estrangeiro, como aparentemente aceita-la sem reservas nem qualquer análise crítica maior.
Entre o que entreouvi, algumas “pérolas” bastante conhecidas nossas, como um antissemitismo indisfarçável, contido na expressão “A Palestina nunca foi judaica, e os Palestinos estavam lá desde sempre” (parece saído do panfleto antissemita “O Protocolo dos Sábios de Sião”), ou “Na segunda guerra a divisão arbitrária do Oriente Médio foi feita somente para garantir à Inglaterra o acesso ao petróleo” (sem se aprofundar no porquê, na estratégia da própria guerra ou ainda na instabilidade milenar da região) ou, por último, a afirmação de que “tudo o que interessa sempre foi petróleo” uma afirmação que, se é correta em uma boa medida, o é mais para fins do conflito Suni-Xiita do que para com os EUA, especificamente, e mais diretamente para tempos mais recentes, em que os EUA são mais do que autossuficientes nesse podre óleo preto.
Indo adiante, o rapaz não conteve seu desejo de ver os “EUA derrotados” pelo Irã, indiscutivelmente algo que faz parte do ideário da esquerda brasileira, independentemente do fato dos Aiatolás perseguirem minorias, matarem cristãos, enforcarem gays em praça pública e reprimirem suas mulheres com crueldade. A síntese da conversa, da qual quase cedi à tentação de participar (ia dar zebra, certamente…) é a de que qualquer ação contra o ocidente está justificada; o ocidente é mau, o ocidente é o capeta.
Li agora a matéria do Estadão que dá conta da natureza dos protestos em Teerã e no restante do Irã, e me chamou a atenção a frase que coloquei como tema deste artigo: “Eles mataram nossas elites e as substituíram por um governo liderado pelo clero”. A que se refere? Temos que voltar a 1979, quando a revolução dos Aiatolás tirou do poder um governante meia-boca, autocrata, o famoso Xá Reza Pahlevi, e colocou no lugar uma teocracia. De lá pra cá, o que era um dos países islâmicos mais abertos e modernos do mundo se tornou um fato de instabilidade regional e mundial, com ramificações tão terríveis quanto a triste situação do Iêmen ou a ascensão de organizações terroristas em vários locais do mundo, patrocinadas pelo regime de Teerã.
Os manifestantes cantam como palavra de ordem o “Eles mataram nossas elites e as substituíram por um governo liderado pelo clero” na Universidade Tecnológica de Sharif. A elite eram o Xá, um sujeito não muito “povão”, como sói acontecer com monarcas de dinastias antigas, sua mulher, Farah Dihba, uma perua que tinha coleções imensas de sapatos e jóias, e que desfilava a bordo de carrões importados, e uma elite dominante de séculos. O tal Xá governou de 1941 até 1953, quando acabou tendo que fugir do país, que escolheu um governante por meio do voto, Mossadeq, e que foi deposto logo depois, no que se convencionou chamar de a primeira ação da CIA para depor um governante de outro país.
Fato é que o Xá era mesmo um péssimo governante, e que estava no poder quando da 2a crise do petróleo, de 1976. Essa crise não fez só essa vítima no mundo, mas em muitos lugares, inclusive com um baque terrível na economia brasileira, desencadeando anos depois a crise da inflação, entre outras, ao redor do mundo. O Xá subestimou os Aiatolás e estava muito mais preocupado com a URSS do que com os turbantes… O fato é que a Revolução começou com um “acordão” entre a esquerda local, municiada pelos comunistas de então, o clero e forças militares, acabou por sair vencedora, com o episódio imortalizado pelo filme “Argo”, sobre a invasão da embaixada americana em Teerã, e seus reféns, que impediram Jimmy Carter de se reeleger, e tido até hoje como um presidente fraco. Fato é também que os EUA queriam no poder um governante “a seu feitio” e acabaram por não enxergar que o “acordão” entre esquerda e turbantes seria mais efetivo do que parecia em princípio.
Hoje, os estudantes cantam algo que parece ser verdade – trocaram uma elite nobiliárquica, um rei autocrata, por um estado ainda mais autocrata, repressor ao extremo, e que, para piorar, se imiscui em cada cantinho da vida pessoal, cultural e religiosa do povo. Uma massa crescente de cristãos está sendo vítima de violência sem igual, crueldade macabra por parte do regime. A massa de cristãos continua a crescer, porém, num movimento não antecipado, e, com certeza, que não é resultado de “ações da CIA”, mas do fascínio que a liberdade cristã traz ao ser humano – inclusive a liberdade de rejeitar o cristianismo e fazer troça do próprio Fundador, sem que isso enseje maior repressão.
A dinâmica é quase sempre essa – a troca de uma elite por outra, sem qualquer garantia de melhora. Podemos marcar fatos com a queda da República Romana e ascensão do poder imperial, passando pela sangrenta Revolução Francesa, Revolução Soviética, Chinesa, e vários outros exemplos do mesmo padrão: por achar que algo está ruim, troca-se algo por alguma coisa dez vezes pior.
Aqui, trocamos a (ruim) ditadura militar por algo mais insidioso e que, com pretexto de aprofundamento da democracia, nos colocou no mais longo período de recessão e desemprego da nossa história. Corremos o risco, no Brasil, de fazer uma troca da mesma natureza da do Irã: trocar algo que se poder trocar por algo que não vai embora nunca, exceto com muito sangue: um regime que se mantêm a despeito do povo – no Irã, pela religião; aqui no Brasil, pela escravidão cultural-ideológica.