Quem viveu os tempos da Ditadura Militar tem sentimentos ambíguos. Se um lado, era uma época de maior prosperidade (até a crise do petróleo de 1976, pelo menos), de mais segurança (a crise das drogas não estava instalada no mundo ainda) e de uma liberdade razoável (pra quem não queria pegar em armas contra o governo militar).
Era um tempo de restrição ao voto total, pra presidente, etc (bom, na verdade, em um regime parlamentarista ninguém vota pra chefe de governo, que é o primeiro-ministro…). Isso não significava, na minha opinião, que éramos menos ouvidos do que somos hoje – a surdez era um tantinho menor, por parte dos parlamentares, mas havia menos casuísmo, talvez porque o mundo fosse menos casuísta, embora hoje o acusemos de ter sido mais hipócrita, como se aborto indiscriminado, uso de entorpecentes, queima de bandeiras, crucifixos “naqueles lugares”, peitos de fora dentro de igrejas, círculo de marmanjos com o dedo nas partes íntimas dos outros, entre outras “manifestações culturais” fossem garantia de que tenhamos derrotado a dita “hipocrisia”.
Era um tempo de intensa peleja internacional pelos corações e mentes das “massas”. O conceito de “luta de classes” tinha declinado, pois que os “proletários” tinham conseguido mais benefícios e uma vida melhor na mão dos “burgueses sujos” do que nas mãos dos esclarecidos “comitês de planejamento central” dos partidões mundo afora.
A luta migrou, de uma luta “de classes” para uma luta de “quaisquer opostos”. A aposta migrou de ricos X pobres, trabalhadores X patrões para qualquer grupo que estivesse disposto a se opor a outro: gays X héteros, pretos X brancos, ateus X religiosos, e por aí vai. O que realmente importa, não mudou – separamos lados, e deixamos eles brigarem até que não haja oposição a um projeto de poder hegemônico, que de preferência passe longe de toda e qualquer espécie de controle democrático ou possibilidade de dissenso.
Quando hoje, porém, vemos nas ruas gente clamando por “AI-5”, dá um frio na espinha. Ora, pra quem não sabe, AI-5, ou Ato Institucional No. 5, foi um tiro de canhão baixado pela ditadura contra qualquer um que discordasse dela e assim se declarasse publicamente. Cassação de mandatos, prisões sem direito a habeas corpus, e muitos outros instrumentos ditatoriais. Ninguém em sã consciência pode ser a favor desse nível de arbítrio sobre nossas vidas. Afinal, “quem vigia os vigilantes”? A despeito da infantilidade de boa parte do público sobre o AI-5, a verdade é que ninguém sabe como, e se termina, um troço desses. Melhor ficar longe disso.
Mas dá pra entender perfeitamente o desespero e angústia dos corações e mentes de quem vai às ruas apoiar uma coisa dessas: essa é uma reação ao outro extremo – um poder praticamente ditatorial que está sendo imposto à população, principalmente por dois “poderes”: o STF e a Imprensa.
O STF tem dado mostras inequívocas de que extrapolou toda e qualquer noção de auto-contenção em seus poderes. Avocou a si o “direito” de abrir investigações, convocar a Polícia para cumprir mandados de busca e apreensão de sua própria lavra e pedido, e, por fim, invadir a privacidade de quem quer que se lhe dê na telha. Prova disso é que se eu tivesse a audiência que tem outros sujeitos (sou protegido somente pelo meu relativo anonimato), eu estaria em maus lençóis, provavelmente teria minha vida revirada do avesso a mando de um Alexandre de Moraes ou Dias Toffoli. E sem direito a defesa.
Já a imprensa, para um lado ou outro, diga-se, tem cumprido um papel fantástico de desinformar. É o “ministério da verdade” do clássico 1984, de George Orwell, revisitado, na forma de um “poder fora do poder” mas com função idêntica. Ater-se aos fatos e noticiá-los já não faz parte da função do jornalista. Sua função é ver os fatos e explorá-los da melhor forma possível, para atender suas intenções próprias, sua agenda própria e sua visão política – qualquer que seja. Não me atenho a “lados” nesta conversa.
Estamos sob um AI-5 instaurado sem esse nome, pelo STF; estamos sob um outro AI-5, instaurado pela imprensa, sob forma de enxovalhamento de reputações, de um e de outro lado, sem direito a sursis. Será que vale a pena ir às ruas pedir MAIS um AI-5?