Os Jacarés e a Geração Covid

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Não posso afirmar bem como foi… É como se eu tivesse sido transplantado ao ano de 2030, e já em condições totalmente diferentes da minha vida habitual. De “mastigador de número” e contador bissexto, me vi alçado a uma posição que nunca poderia imaginar. Vivi algo que ainda não sei bem explicar. E voltei pra contar.

Quase uma década depois do malfadado 2020, o mundo estava diferente. Sai de casa de máscara (não essas de pano qualquer, mas de um látex cinzento com uma espécie de “botão” laranja na frente, que apita quando chego perto demais do alheio – qualquer alheio…). Não vivo mais numa casa, mas num apartamento num bairro bem aglomerado no centro. Viro a esquina e dou de cara com mais um monte de gente de máscara cinza com botão laranja. Cada vez que um vivente chega próximo demais de outro, o botão laranja acende e apita.

O povo chama a máscara de BolsoTrump, em homenagem a dois ex-presidentes que brigaram com a “ciência” da época. Uns trogloditas esquisitos. Passou… passou… tudo parece ter voltado aos “eixos”.

Viro a esquina e entro num prédio – parece que meus pés sabem onde querem me levar. Supostamente trabalho ali, no comando alguma divisão do governo ligada à saúde. Fica difícil conciliar minha vida atrás dos balanços e fluxos de caixa e essa, ligada à medicina. Tenho pavor até de ver sangue. Sinto minha cabeça girar. Como fui parar aí?

Mas um impulso, um dever, desse outro eu nesse universo paralelo, me impele. Nada disso estava aqui ontem, e francamente é como se os últimos 9 anos tivessem passado num borrão. Não estou mais gordo, e sei que algo aconteceu pra que eu perdesse o excesso de uns 20 Kg – uma bariátrica que eu programara em 2020 e que não aconteceria antes de 2021? Não sei. Tudo é uma névoa só.

Entro no prédio e dou de cara com o porteiro. As escamas que ele tem na testa dão um ar de alienígena de Star Trek (um Romulano?) mas de alguma forma parecem “comuns”. As mãos estão ornadas com umas unhonas grandonas, pontudas e esverdeadas. Ele me responde com cordialidade, que nem posso dizer se é habitual ou não. Está lá… uma cordialidade que eu chamaria de bovina – se não parecesse reptiliana.

Tinha um ascensorista (Sic!), com um focinho esverdeado e presas afiadas, e testa de homo-sapiens-sapiens, cabelos meio ruivos, olhos esverdeados, parecendo a Cuca do Sítio do Picapau Amarelo. Parte de mim levou a cena na boa; parte talvez tivesse se borrado de medo, ou dado risada. Ascensorista? Por que? Pergunto e ouço a resposta: “condutor de veículo vertical”… orgulho profissional! Estou num filme da Marvel, esse de universos paralelos, de cor meio desbotada e uma mistura de coisa antiga e nova. Um ar de Berlin Oriental dos anos 60 e Blade Runner.

12 andar. Sala 144, a do canto, grande, clara e bem mobiliada. Um dos quadros na parede reconheço como o da minha casa em 2021. Algo ali me é familiar. Respirei fundo e tentei acalmar minha “outra parte”, já que a parte “paralela” parece estar de boa. A secretária chega. Não tem focinho nem escamas, mas quando ela se vira eu vejo uma renca de protuberâncias saindo das costas, como um dinossauro – também esverdeado.

Sr. Figueira, o Dr. Palhares perguntou por si. Anotei direitinho pra não esquecer… Ele mandou… e me passa um bilhete – “Figueira, preciso discutir contigo a questão das remessas de máscaras novas… as com bico vermelho – pros Insistentes”. Que bico vermelho? Que máscaras?

De novo meus pés me levam ao Palhares, a quem conheço sem nunca ter visto. Essa confusão de paralelo e oficial vai acabar me colocando em uma saia justa. Palhares acena pra mim. Tudo normal, os olhos amarelados e dentes pontudos saem da boca grande. O terno Armani super chique e os sapatos de um couro que desconheço – um cromo qualquer – me parecem estranhos, mas o Figueira do Universo Paralelo não acha nada estranho.

Figueira, você é uma mala mesmo! Quantos insistentes catalogamos semana passada? – “Uns 2 mil”, respondo – de onde saiu a convicção, não tenho ideia.

– “Então?” – pergunta Palhares – “nem pensou nas máscaras de ponta vermelha (as “Dula”, em homenagem a outros dois ex-presidentes)? Não temos nenhuma, e essa gente vai causar encrenca. Sem Dula na cara, ou no mínimo uma BolsoTrump, os caras vão sair fazendo arruaça. Vamos agilizar isso. O Ministério deve ter algumas ainda, em Brasília. Vamos pegar o que pudermos.” O Figueira do Universo Paralelo sabe que as máscaras de botão vermelho não são apenas para controle de distanciamento social, mas possuem agulhas prontas para injetar vacina, caso o sujeito ultrapasse a linha que o STF chamou de “Limite da Insurreição Social”. Reclamar é uma coisa. Falar com repórter acarreta meia dose de Pfizer… Escrever textão no Face questionando a ciência do distanciamento dá uma dose de Oxford… e pra completar, levantar cartaz e fazer manifestação dá uma dose inteirinha de Coronavac, e a certeza da cura, pela Semisaurização compulsória – que o STF não quis impor de cara, pois que os países desenvolvidos chamariam de ditadura do judiciário…

Saio tão rápido quando consigo (ser 20Kg mais leve ajuda um monte!). O monitor de tubo catódico me liga por Skype ao Ministério e rapidamente consigo, não as 2 mil, mas perto disso – 1.800. Já dá pro gasto. Deixo mais 2 mil pedidas pro mês que vem, quando as campanhas de conscientização do mês deverão estar concluídas, e os relatórios de anomalias reportarem os novos insistentes.

De volta na sala, o Figueira do Universo oficial se pergunta que raio foi tudo aquilo. O que são “insistentes”, e o que as máscaras de bico vermelho fazem. O Figueira do Paralelo sabe, mas teima em achar que eu sei e não precisa me contar. Somos duas pessoas numa cabeça só. Eu, o Figueira do Oficial, de carona.

Resolvida a questão das Dula, volto a agir sobre o outro tema – as reações adversas. Durante a vacinação de 2021, ninguém se preocupou muito com os resultados de médio prazo – longo prazo, nem se fale. Quando começaram a aparecer os primeiros dentões e as peles esverdeadas, os olhos amarelados e os cachorros e gatos da vizinhança começaram a desaparecer, o Ministério se preocupou. Eram coisas simples, no início, e quem tinha as reações não ligava muito. Tinha até quem gostasse – os “mutantes” (ou semi-mutantes) principalmente. Havia uma espécie de euforia, uma alegria de estar vivo, que contaminava os Semisauros, como passaram a ser tecnicamente chamados, que fez com que ninguém quisesse chegar muito perto ou questionar muito sua nova condição. Era o mRNA que havia feito isso. Um ex-presidente havia predito isso e o povo tinha dado muita risada dele. Afinal, como é que uma vacina chinesa, de Oxford ou de um dos mega-laboratórios mundiais poderia fazer de mal? Ainda mais transformar alguém em crocodilo, jacaré, caimã ou coisa que o valha… bestagem desse povo.

Uma vez estabelecida a comunidade dos Semisauros, passou a ser perigoso criticar muito. Assim, em poucos anos, os peles verdes e olhos amarelos começaram a ascender socialmente, por conta do efeito de tribo entre eles. Palhares era um deles, e tinha tido muito sucesso, desde que saíra da condição de veterinário no Zoológico de Curitiba para a exaltada posição de líder do combate aos Insistentes.

E os Insistentes? Gente que se recusou a tomar as vacinas, e foi até o STF pra ganhar o direito de não ser vacinado, contraiu Covid-19, depois Covid-20, depois Covid-21 e assim por diante. Agora, já na Covid-28 (a deste ano e do ano passado atrasaram), eles insistem em não se vacinar. Foram perdendo a capacidade cognitiva e hoje são os cara que fazem os trabalhos mais braçais, pesados e sujos da economia. Quase já não há Insistentes em cargos de direção, Se tornaram os Forest Gump de 2030, só que sem sorte.

Eu? nem sei – não me olhei no espelho pra saber se sou Insistente ou SemiSauro. Passo a mão no pescoço e na testa pra ver se acho algo estranho. Não acho nada. Os dentes continuam de herbívoro. Relaxo, e me pergunto – será que isso é bom?

Palhares entra como uma fúria, de novo, na minha sala e me convoca a ir confrontar uma nova manifestação de Insistentes na frente do prédio. – “Meio dia, quase, por que esses caras insistem em manifestar na hora do almoço? Por que não fazem como todo mundo e manifestam na hora do expediente”?

Eu eu paralelo responde – “Eles tem o que fazer. Tem essa mania de trabalhar, bater ponto… sabe como é… só manifestam na hora do almoço, sábado, domingo… é da natureza deles”. Palhares esfumaça pelos ouvidos… Dá pra sentir a mufa…

Palhares chama a segurança e descemos cercados de oficiais – todos Semisauros, armados. Do lado de fora algo como 100 manifestantes (a mídia vai falar que foram 10, o movimento vai dizer que eram 10 mil… same old…). Cartazes pedem o fim das vacinações: “Cloroquina ampla, geral e irrestrita” e “Fora Dirceu”, pedindo o impeachment do presidente. Outro cartaz diz “Cuidado rapá / o mRNA vai te pegá” (assim mesmo).

Palhares pega o megafone e começa – “dispersar para evitar o uso da força” seguido daquela microfonia irritante de filme americano. A líder (aparente) do movimento berra de volta – “Não vamos usar M3rd4! nenhuma de máscara de nariz vermelho! Ninguém aqui come gato e cachorro de vizinho! Abaixo a vacina!”.

Um dos seguranças, indignado com o tratamento dado aos Semisauros (afinal criticar hábitos alimentares é discriminação!), parte pra agressão e lança um jato de spray de pimenta na tal líder, berrando “obscurantista! fascista!”. O pau come. Os seguranças deixam as armas e partem pro ataque usando o que lhes é mais letal – garras e presas. Os manifestantes recuam. Não há, estranhamente, nenhuma câmera ou microfone de TVs ou qualquer outro veículo. Só os celulares gravam tudo – uns modelos parecidos com PT.550 Motorola, só que com visor melhorado e tecnologia 8G. Os manifestantes recuam depois que um sujeito preto (negro!) tem o braço arrancado por um segurança mais “acrocodilado”. Tem um pouco de sangue na calçada, mas ninguém liga muito, depois de tantos episódios parecidos.

Depois de chamar o SAMU, o manifestante foi atendido, a turba vai se espalhando e cantando palavras de ordem. Voltamos ao escritório. Palhares recomeça a cantilena – “Já falei. Se não forem marcados oficialmente como Insistentes, vão dizer que estão em processo de transformação, e que já tomaram vacina. Como não dá pra dizer que não, já que o governo perdeu o controle dos vacinados, fica nessa… o STF mandou a gente não começar o processo de ressocialização enquanto o sujeito não for marcados oficialmente. O volume de Insistentes tá aumentando… já falei com Brasília… Isso vai acabar virando uma revolta de proporções maiúsculas. Ainda bem que a falta da vacina afeta o QI e essa gente já não tem mais tanta capacidade de mobilização… Mas vai que surja um Enstein Insistente entre eles… corremos o risco de ter uma guerra civil nas mãos… e olha que tudo o que queremos é pro bem deles!. Negacionistas! gente burra! Devia estudar! Não conhecem ciência!”

Fico no meio do caminho, entre a pena dos Insistentes de QI baixo e os Semisauros ferozes mas preocupados com o bem estar geral. É uma situação difícil.

Na TV, de noite, o presidente fala à nação – “Hoje, vimos várias manifestações contra a ciência e pelo obscurantismo. Gente de QI baixo, que se recusou a tomar a vacina, enfrentou as forças da lei, que foram obrigadas a dispersar as manifestações com galhardia, e algumas mordidas“. E chorou, segundo ele, de pena desse povo sofrido, que não entende que a ciência trabalha para seu próprio bem… Chorou, porque afinal, lágrimas são típicas de crocodilos.

Do jeito que fui para em 2030, voltei pra 2021, no meu peso normal (Sic!) e com meu mau humor habitual. Tenho que decidir: tomo ou não tomo a vacina? Se eu tiver visto o futuro, tenho a escolha de virar um Sauro ou me tornar um Burro, Insistente…

Da sala minha mulher avisa – “vamos sair que chamaram a nossa faixa de idade na fila da vacina – e não quero mais nem meio mais – você VAI COMIGO!” berra ela… e eu vou…

7 comentários em “Os Jacarés e a Geração Covid”

  1. Excelente Wesley…
    Adorei o texto… muito criativo, espirituoso, engraçado, bem escrito e sem tendências políticas, agradando a todos…
    Parabéns…
    Bc deveria exercitar mais este teu fim da escrita!
    Abraços do amigo -SS-

    1. Amigo Silvio, nada como um mentiroso profissional pra fazer a gente se sentir bem… Hahaha!!! Mas sempre quis me aventurar na ficção de brincadeira, humor e ironia… Nunca tinha conseguido. Ontem, perdi o sono e desci pro escritório pra escrever, e deu nesse “jacaré” aí… Afinal, de jacaré o brasileiro entende… e, sim, a patroa manda aqui em casa…

  2. Ontem, exatamente ontem, e não em 2030, vi um jacaré esperto simulando choro sobre o “massacre bolsofac ” em Manaus…
    Olha que era um jaca farsante riquíssimo.
    Ele recusa se desfazer de seu megaiate, não confunda com caiaque ou canoa, para “ajudar” aos penas brancas de lá.
    Creio que ele não confia na honestidade de “alguéns” por lá…

  3. Outra coisa, meu sobrinho, sem querer dar pitaco na sua vida e criatividade, já já você poderá publicar uma penca (ainda bem que meu cunhado não está mais por aqui…) de pequenos contos excelentes.
    Até sugiro alguns títulos: – Pedacinhos da Minhalma / Retalhos de Memórias / Incontinência Literária (este muito bom pois alguns just now entenderão coisas diferentes, o que dará maior vendagem para os seus libelos ou panfletos – STF here).
    Que tal acha da minha chegada empresarial?
    Take care!

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