Numa cena de Indiana Jones e a Última Cruzada, o personagem de Harrison Ford pergunta à também arqueóloga e colaboradora dos nazistas, a loura alemã Dra. Elsa Schneider: “Por que, ao invés vez de queimar livros, vocês não experimentam lê-los?“.
Bela pergunta… e que vem se repetindo desde que a Igreja Católica criou o Index Librorum Prohibitorum, em 1559, pelo Papa Paulo IV – somente revogado, pasmem, em 1966, pelo Papa Paulo VI.
Era o auge da contra-reforma, e o objetivo era o de banir textos que atentassem contra os dogmas da Igreja. Alguns personagens de destaque foram “agraciados” com uma menção no tal Index, como Rousseau, Descartes, Galileu, & Cia. Isso não foi exclusividade dos católicos. Luteranos e Calvinistas, o próprio Calvino à frente, também proibiram, ou tentaram proibir, o acesso das pessoas ao que eles julgavam inadequado. Acho que nós, batistas, fomos os menos afeitos a isso, o que nos deu a alcunha de “Livres Pensadores”, naquela época. A fé se adquire livremente, pelo exame de tudo (como disse o Apóstolo Paulo em I Tessalonicences, 5:21 – “Julgai todas as coisas, retende o que é bom“.
A síntese de toda a censura pode ser condensada numa palavra: MEDO. Lideranças católicas, protestantes, muçulmanas, e outras, tinha medo de que seus fiéis se “perdessem” nas firulas e intricácias de pensamento de alguns textos, e com isso, se afastassem da influência de seus líderes.
Vivi a vida toda no meio de Livros… eu os amo com paixão. Dediquei boa parte da minha vida a colecioná-los e lê-los. Não deixo entrar na minha estante nada que eu não tenha lido, usado em pesquisas, ou ambos. Tenho um Livro na cabeceira que nunca deixo sair, a Bíblia (na verdade uma coleção de livros).
Ao longo dos últimos anos passei a usar o Kindle, que me dá uma baita velocidade de leitura, mas me tira muito da retenção de detalhes, da capacidade de rabiscar (não sou muito fã, mas faço) mas me dá a possibilidade de ler da hora que acordo à hora que caio de sono, às vezes de madrugada. Estou pensando seriamente em reduzir drasticamente meu uso do Kindle – mas terei que aumentar minhas estantes, e a patroa é capaz de me jogar pra fora de casa…
Livros são tesouros. Mesmo os ruins. Afinal, de que servem apenas os bons conselhos, se os não temos os maus conselhos para fazer o tão necessário contraste “claroscuro” que nos dá capacidade de enxergar a realidade?
Por isso um texto de Madeleine Lackso, hoje, na Gazeta do Povo, me chamou atenção. Dê uma pausa, por favor, e leia, no link https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/madeleine-lacsko/movimento-quer-proibir-todos-os-livros-porque-nao-sao-politicamente-corretos/ e depois volte.
Voltou? Pois bem, minhas considerações vão na direção exatamente do MEDO. A tal hashtag “#DisruptTexts” foi criada por uns professores americanos que entendem que existe a necessidade de “purgar” as mentes e corações dos jovens de textos que eles acham inadequados. O argumento não é feito com relação à falácia de um texto ou em como ele pode “disruptar” um dogma ou ideologia. Diz respeito tão somente ao que consideram “politicamente incorreto”. Ou seja, querem informar ao leitor por que ele não deve ler Shakespeare, ou Homero, como fala a autora do artigo.
O conceito de “Espírito do Tempo”, conhecido em todas as línguas (Esprit du Temp, Zeitgeist, e trololós) foi cunhado exatamente porque há séculos o homem se depara com a leitura de textos que se baseiam em realidades diferentes das suas. Ao advertir, ou chamar o leitor para atentar para o Zeitgeist, quem escreve ou fala nos diz: “era assim que se pensava naquele tempo”…
Os romanos achavam abjeta a prática do sexo homossexual dos gregos, e chamavam o homossexualismo de “Vício Grego” (aqui, eu, eu mesmo, peço que invoquem o Zeitgeist e não me apedrejem – ainda). No entanto, os romanos de alta classe mandavam seus filhos para serem instruídos aos pés dos grandes filósofos gregos da época. Fica claro que, há mais de 2 mil anos, os romanos já conseguiam entender o conceito de Zeitgeist contido nos clássicos da literatura grega, e “perdoar” (Sic!) Homero, Ésquilo & Cia.
O próprio Shakespeare conseguiu escrever livros que o remetiam a tempos anteriores ao dele próprio, retirando a lição de vida, o entretenimento e a beleza de dentro do Zeitgeist, sem que fosse necessário purgar ou “disruptar” o que quer que fosse.
Essa nossa sociedade não consegue entender que a Cabana do Pai Tomás representa o espírito de uma época. Tom Sawyer e Huckeberry Finn, clássicos da minha infância, são considerados inadequados para que nossos filhos os leiam. Há alguém, de fora da cultura, de fora do entendimento do passar do tempo, que está nos dizendo o que ler, no que acreditar, como nos comportar, como falar. Estamos assistindo passivamente a destruição da cultura, da filosofia, e até da ciência.
Não se discute com uma equação. Ponto final. Isso foi o que aprendi. Não mais, aparentemente. Uma equação nos “faz sentir” mal ou bem. Portanto, se a realidade não se adapta ao que eu penso, dane-se a realidade. Dane-se a razão, dane-se o bom senso, viva a fogueira de livros, tocada a Readers` Digest dos anos 60, 70, 80 (hoje impossíveis de serem lidos sem o crivo dos “iluminados” do novo Index Librorum Prohibitorum.
Nunca poderia imaginar que o fim dos tempos (sim, creio que estamos perto dele) poderia acontecer não pelas mãos de um tirano de bigodinho ridículo ou um penteado mais ridículo ainda e olhinhos puxados, mas pelas mãos de professores teoricamente encarregados de nos esclarecer e ensinar a pensar.
Para quem ama livros, perdê-los é como viver escondido por ter-se recusado a receber a marca da besta.