Assisti a duas produções muito bem feitas, do Netflix e do Starz esses dias. Duas séries muito bem escritas, cenários lindos, bons atores e atrizes, produção caprichada – Bridgerton (NetFlix) e The Great (Starz). Achei legal. Mas o que chama atenção, em ambos os casos, não é a beleza, a produção ou o enredo, mas a proposta politicamente correta…
Brigerton tem nobres, “gentry” e até membros da casa real negros. Aqui, o primeiro Alerta de Bom Senso: O Ministério da Cidadania Adverte – “Não estou fazendo QUALQUER afirmação de caráter racista. Longe de mim, de verdade, discriminar quem quer que seja, com base em qualquer coisa, seja cor da pele, credo, nacionalidade ou outra – Peço aos desavisados ou leitores “de superfície” que releiam o que escrevi!“.
Já o ótimo The Great, que tem por subtítulo “uma história (quase sempre) verdadeira sobre Catarina da Rússia“, retrata o amante da Czarina como sendo um baixinho fogoso, mas estéril, mulato, o Conde Vorosnki. Legal… É uma releitura, digamos… Não só isso, havia também nobres de origem oriental e até meio indígena, diria eu…
Entendo o aspecto da releitura dos episódios históricos, entendo perfeitamente a ironia ou mesmo o humor. Exemplos abundam, como Graham Chapman, de Monty Python interpretando Brian Cohen em a Vida de Brian. Um inglês branquelo, de olhos verdes no papel de um para-messias confundido com Jesus, já que nascera no mesmo dia – o nome já é uma bela piada, de cara… Brian, judeu levantino, sobrenome Cohen – ou “sacerdote”.
Ou ainda – e pior – uma Elizabeth Taylor, branca, de olhos liláses, no papel de Cleópatra, com um Julio Cesar igualmente branco, louro de olhos azuis, interpretado por um Richard Burton com basta cabeleira, quando Cesar era (quase) careca e romano (moreno, nariz reto, grande, cabelo preto)… São épocas diferentes, objetivos diferentes – do humor à estética ocidental mal aplicada, pura e simplesmente.
O caso aqui, bem como casos como a recente briga para saber quem interpretaria a nova Cleópatra – no caso, Gal Gadot, israelense, morena e esguia (o que já é um avanço étnico sobre Liz Taylor, diga-se). As críticas choveram à escolha de Gadot, “por não ser de origem egípcia”, mas israelense. A piada aqui é que tampouco Cleópatra era egípcia, mas Macedônica, pois que descendente de Ptolomeu, general de Alexandre, o Grande, e que ficou com o Egito quando da morte do patrão, como espólio de guerra.
Mas voltando ao tema central – seja por humor, seja por politicalha ou doutrinação, vamos perdendo a acuidade histórica por conta de imbecilidades sem fim. Shakespeare está proibido em alguns lugares, nos EUA. Abraham Lincoln está a ponto de ser “cancelado”, assim como Thomas Jefferson e outros dos “pais fundadores” da democracia americana. A razão? Tinham escravos, num tempo em que isso não era nem ilegal e nem incomum.
Por aqui, o escravagista Zumbi dos Palmares ainda reina supremo como figura de proa do movimento negro, a despeito de ter sido, ele mesmo, dono de escravos. A história, como a conhecemos, vai sendo reescritas a golpes de foice politicamente correta. Seja por imbecilidade, desconhecimento histórico ou simples desejo de apagar algo (que ocorreu, para o bem ou para o mal), vamos vendo as novas gerações incapazes de ver o que aconteceu da forma como aconteceu, independentemente de aprovarmos ou não.
A Reforma Protestante é um fato histórico, goste-se dela ou não. Católicos não a aprovarão, evangélicos sim, mas independentemente de qualquer opinião, foi um fato, e está aí. Papas tiveram dezenas de filhos, reis foram estupradores, e mesmo o quase “santo” Martin Luther King, pastor batista, com todos os seus feitos em prol dos Direitos Civis nos EUA, era chegado num sexo pago, fora de casa, e, dizem, em algumas substâncias ilícitas.
Ora, não é, nem deveria ser papel do historiador, tentar fazer da história algo palatável à sua preferência. Dos talvez 10 mil anos de vida do homo sapiens sobre a terra, 9,8 mil tenham-se passado sob regimes de escravidão, como coisa comum e corrente. Do antigo Egito até quase no século XX, houve escravos no mundo sob legalidade.
Criticar a Inglaterra por ter tido escravos, e fomentado o tráfico, é fácil. Difícil é reconhecer que William Wilberforce, junto com Willian Pitt e John Newton, conseguiram acabar com o tráfico negreiro no Reino Unido, o que logo depois foi seguido (não sem brigas) pelo resto do mundo ocidental.
O que hoje é um absurdo, há pouco mais de 100 anos era realidade legal. A escravidão ainda existe, na prática, em muitos lugares. A história que está sendo feita hoje deve retratar a triste realidade das mulheres do leste europeu, escravas sexuais de máfias do oeste da Europa, como uma tragédia, de forma correta e científica – como ocorreu! Vi essa realidade com meus próprios olhos na República Moldova, em casas-lares que nossa missão teve que erguer e manter, para abrigar os órfãos de mães vivas, as lindas moldovas, que eram cooptadas como “modelos” na Itália, Espanha e outros países, para acabarem como prostitutas e ter o passaporte preso e mortas, em caso de gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis.
Por que cancelar Shakespeare? Por que cancelar Monteiro Lobato? Qual é a dificuldade de entender que eram simplesmente outros tempos, e que, aprendendo com eles, eliminamos diversos comportamentos absurdos? Qual a dificuldade de entender que conhecendo o passado com precisão talvez não venhamos a ser presas de comportamentos parecidos?
Será que achar que as Cleópatras eram louras de olhos liláses, ou que havia um Conde Voronski mulato no tempo da Czarina Catarina, a Grande, ou ainda que Monteiro Lobato era um maldito racista, pois que a Sinhá Nastácia não tirava férias, nos torna livres das práticas que vemos registradas ali?
O dito é que “a história é escrita pelos vencedores“. Heródoto, o pai da história, se remexeria no túmulo, creio. História deve ser mantida a todo custo, e retratar o que aconteceu, com tanta precisão quanto possível. Claro que há ângulos diferentes da mesma história – talvez por isso Deus tenha nos legado não somente um, mas quatro Evangelhos, cada um com um enfoque diferente, um do ladinho do outro, pra vermos que há formas diferentes – e não necessariamente conflitantes ou erradas – de encarar um fato observado.
Não nos cabe raspar fotografias para retirar delas nossos desafetos. Não tem honra, muito menos honestidade histórica, o sujeito ou sujeita que apaga seus posts, por terem se tornado inconvenientes à sua atual narrativa. Melhor seria dizer “eu estava errado”, “eu acreditava errado” ou ainda “eu me arrependo”, e deixar lá o maldito (ou bendito) registro do que um dia pensamos e postamos. Apagar posts, raspar fotos, ou ainda quebrar estátuas de reis anteriores são exemplos, antes de qualquer coisa, de medo. Sim, o medo de que algo venha a assombrar nossa vida atual ou atrapalhe algum plano que temos. A mim me parece que se tenho esse tipo de medo, tenho alguma intenção menos digna na cabeça.
Deixemos os cancelamentos de personalidades, ou a quebra de estátuas, raspagem de fotos e re-inscrição de textos para os medrosos e para quem tem o que esconder ou enganar. Não vamos permitir, não podemos permitir, que a acuidade histórica, que a história como ciência, seja eliminada de nossa vida.