Um boteco em Xambioá

google maps

Lendo hoje um artigo do Paulo Polzonoff sobre um boteco de Curitiba que virou point de esquerda, e que serve, segundo o autor, um “Torresmo com gosto de Lula”, me lembrei de um episódio ocorrido comigo nos idos de 1986, 87, sei lá. Estava eu auditando uma subsidiária de uma empresa carioca, que tinha enormes terras de gado de corte, em Araguaína, antes Goiás, hoje Tocantins.

Num final de semana fui convidado pelos gentis donos do escritório de contabilidade que faziam de guarda-livros do meu cliente uma viagem de fim de semana com eles pra uma “chácara” que tinham na beira do Rio Araguaia, na divisa com o Pará (o “Parazão”, como falavam, como se Goiás/Tocantis fosse algo do tamanho de Israel… hehe).

De lá, como precisamos pegar um barco novo, descemos o Araguaia de Araguanã, local onde estávamos, até Xambioá, do outro lado do rio, uns 20, 30 Km mais abaixo (para o norte). Lá, descendo do barco, ganhei uma cicatriz na cabeça do meu dedão, por ter descido e pisado num caco de vidro no fundo do rio. Minhas boas vindas ao Pará foram parar numa farmácia local, e depois, com o dedão enfaixado, fui eu fazer o que o cara da cidade faz enquanto todos cuidam do barco. Junto com mais uns 2 ou 3, fomos pro boteco local.

Lugar interessante, grande, amplo, de madeira e bambu, com chão já de cimento, e telhas de barro, bem cuidadinho, muito bacana, mas aberto, quase todo ele, nos lados. Fui até no Google Maps pra tentar ver se me vinha algo de lembrança do local, e o possível bar, mas francamente, não lembrei de nada.

Entrei no Bar e dei de cara com uma bandeira da República (do Araguaia), retratos de Che Guevara, Fidel Castro, Mao, Lenin, tudo bem vermelhinho, show de bola. Como estávamos ainda na transição democrática, Sarney de presidente, perguntei se eles não tinham problema com a lei – “não, claro que não… esses caras foram embora lá pelo início dos anos 70, quando prenderam os líderes, inclusive Genoíno. Nunca mais deram as caras pra bater nem atirar. Só tem aqui médico, e os caras do IBDF “(Instituto Brasileiro de Defesa Florestal, o IBAMA da época, creio).

A pergunta veio, como é comum comigo, sem muita reflexão – “mas você é comunista”? O cara – “por que?” E eu… “ué, tem bandeira de Cuba, da República do Araguaia…”. E ele emendou direto – “não sou comunista não. isso aqui é o mote do estabelecimento… gosto mesmo é do dinheiro dos garotos da USP e UFRJ que aparecem aqui, sentam, enchem a cara, choram de saudade (!) e vão embora deixando um troco na minha mão…“.

Nas paredes tinha muita “memorabilia”, desde garruchas até “dinheiro” da república, fotos de revistas Manchete, etc, além das indispensáveis (na época) fotos de mulheres (quase) nuas, de posteres das revistas masculinas da época.

Sentamos pra bater papo. Boteco quase vazio, eu com o dedão do pé latejando. Os amigos pedem cerveja super gelada (a tal Cerma, prima-irmã da Cerpa – uma é “Cerveja do Maranhão”, a outra “Cerveja do Pará”). Pedem também o maravilhoso prato (tábua) de carne seca com mandioca cozida de lá. Coisa muito chique, difícil de descrever, de verdade. Um manjar.

Papo vai, papo vem, eu sou perguntado sobre minhas posições. Na época, bem jovem, tinha poucas, mas desde sempre odiei as tendências mais à esquerda. Desconversei um pouco mas disse que meu pai era político e que era da Arena 1 (na época a Arena, Aliança Renovadora Nacional, tinha a “1” e a “2” na minha cidade de Cordeiro, RJ).

O clima esquentou um pouco quando eu falei que apesar de ser contra ditaduras, achava que a que estava acabando tinha feito grandes avanços, mas que eu concordava que era melhor um poder civil. Ânimos mais exaltados, fiquei na minha pra não apanhar dos circundantes, quase todos gente que veio alugar uns “quiosques” com umas redes, na beira do Araguaia, e tomar cachaça com gelo dentro de uns abacaxis enormes, e comer ovos de tartaruga tracajá, e paquerar nas “praias” de água doce do local.

O dono do local se levanta, bate na mesa e declama – “a guerrilha já acabou, os comunas já voltaram pra Sumpaulo. Aqui qualquer um fala o que quiser“. Os diversos tipos ao lado não tiveram coragem de contestar o sujeito, mas jogavam algumas piadinhas pra eu ouvir. Foi muito legal. Foi uma demonstração de socialismo etílico capitalista, misturado com tábuas de carne seca e mandioca, difíceis de esquecer.

Sequer ousei dizer que tinha um tio que na época devia ser tenente ou capitão da FAB, e que tinha pilotado uns helicópteros na região e tinha umas histórias bem interessantes daquele tempo… Aí eu apanhava, na certa…

Seguimos conversando até sermos chamados pra retornar pra Araguanã, numa viagem de volta de umas 4 horas (descer o rio tinha levado não mais que 1 hora).

Devo ter uma foto do boteco em algum lado. Esse é um comunismo que valeu a pena viver…


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