Sheol

Não posso dizer que acordei, porque não sabia bem se estava dormindo ou não. Só sei que na minha frente tinha um cara de estatura mediana, e que nem consegui ver o rosto de tanto que o lugar brilhava. Acho de que devia ter estado em algum lugar escuro, porque meus olhos não davam conta de se adaptar à claridade absurda em volta de mim.

Ouvi, mais do que vi, a voz do tal sujeito, o único que eu conseguia mais ou menos ver. Tinha a impressão de que não estava sozinho. Não que parecesse que havia do meu lado um montão de gente, nem porque ouvia barulho típico de multidão. Na verdade, não me lembro nem de ouvir um zumbido sequer. Mas que parecia estar acompanhado, parecia.

A voz me falava de coisas que me evocaram pensamentos ainda da mocidade – coisa que, aos quase 90 anos, é difícil de esquecer. Ao envelhecer, fui esquecendo coisas recentes, e me lembrando de coisas pequenas da infância e juventude; coisas que moldaram meu caráter e minha forma de ser: o cheiro da casa dos meus pais, de fogão de lenha e flor de laranjeira, a textura da pele da primeira namorada, branquela e rechonchuda, a cor do céu e das nuvens, que a gente ficava olhando depois do almoço deitado no capim gordura de trás de casa, e dizia “é um elefante“, “é um camelo“… Épocas mais simples, e que com o tempo pude ter certeza de que ajudei a complicar, a tornar mais pesadas e menos brilhantes.

A voz se aproximou de mim e me dizia que eu tinha, sim, responsabilidade pelos meus atos e que tinha me esquecido de coisas que tinha aprendido, e voluntariamente deixado de acreditar, seguir e obedecer. É fácil ver isso, em retrospectiva. Tive uma vida intelectualmente boa, uma educação – dentro e fora de casa – adequadas, numa escola pública que era melhor do que vi em tempos mais modernos, mesmo paga. Éramos mais simples, menos enxovalhados por complicações que, no fundo, minha geração ajudou a criar.

Fé? Não sei. Acho que não tive nunca algo que possa chamar de fé com F maiúsculo. A mãe? Sim; o pai? Sem dúvida. Eu? francamente acho que não. Ao que a voz me chama e diz “no ouvido” (não dá pra saber se foi ou não) – Carlinhos, esquece o que passou e dê-se uma chance de voltar a crer.

Eu, com minha independência intelectual e língua afiada, respondo na hora: mas crer em quê? Onde é que eu estou, em primeiro lugar, e quem é o senhor (“s “minúsculo, já que não sei com quem falo)? E, por falar nisso, dá pra diminuir a intensidade dessa iluminação? Já estou aqui há uns 10 minutos e não consigo enxergar nada, com essa luz toda na minha cara!

A voz não sobe o tom, não briga, mas demonstra que não ficou satisfeita com a resposta. “Vou te dizer, mas diga: você sabe que dia é hoje?” Eu? Como vou saber? Eu estive tanto tempo deitado naquela cama, em casa, sob cuidado de tanto enfermeiro e médico, e agora, nesses últimos 15 dias, nessa praga de UTI que apita o tempo todo e não te deixam em paz, com um ar condicionado frio demais pro meu gosto e essa dor nas costas que não me deixam! Como vou saber que dia é hoje? Já não sei que dia é hoje há 2 anos.

A voz então fala – “você vai entender que dia é hoje, mas deixa eu te contar algo que você aprendeu e esqueceu: você comete erros e pecados; você viveu uma boa vida, teve boa família, bons filhos, não roubou nem matou, e socialmente é considerado um ‘baluarte’. Esqueça tudo isso. A pergunta permanece: você reconhece que erra?

Sim, em uma boa medida eu sei que erro. Mas não mais do que o vizinho do lado ou o cara da padaria. A voz insiste: “você entende que ao errar você se afasta de quem te criou?” Como assim, “quem criou”? Quem disse que fui “criado”? Eu entendo que somos, eu e todo mundo, produto de um processo não pensado ou planejado de melhorias que acabaram por produzir o Carlinhos, ou Dr. Carlos, como me chamam no escritório, que todo mundo conhece, e alguns até admiram. Não – não admito um “criador” a quem deva prestar contas.

A voz segue: “e quem você acha que colocou as duas primeiras bases nitrogenadas no lugar? Quem, me diga, criou o balanço perfeito entre o ponto de congelamento da água e a gravidade? Por que ela puxa tudo nessa terra pro seu centro a 9,8 m/s²? Quem você acha que coordena tudo? Um “Deus das Lacunas“? Fala sério Carlos.

Falo sério, e digo à voz: ninguém poderá ter certeza disso, agora ou nunca. A voz retruca: “o que é ‘agora’ e ‘nunca’ pra você? Quem te persuadiu a pensar que você continua respirando?“. Eu, “suando frio” (nem posso dizer se é isso ou não) pergunto – morri? A voz: “isso ainda não se sabe. Poder ter morrido, pode não ter morrido; tudo depende de sua decisão“. Uai? Que decisão, eu pergunto já meio indignado. A voz: “a decisão de viver internamente, ou morrer eternamente. A decisão de aceitar que é um cara falho e que, não importa o que você pense ou faça, foi criado com um objetivo, que só cumpriu parcialmente, e mesmo assim só do ponto de vista humano; que esqueceu o Criador, com “C” maiúsculo, e que, como tal, pode não ter mais chance de viver eternamente.

Já meio irritado, respondo – pode me mandar pra onde quiser. Acaba quando acabar, viro pó e boa noite pro gaiteiro… A voz, meio tristonha, diz: “Vou falar contigo uma última vez: lembra daquilo que você aprendeu com os pais, avós, gente que te amava, sobre um Deus bom, um Filho bom que teve que pagar um preço alto por sua causa? É e era verdade. Você pode viver eternamente, ou morrer internamente, ou vice-versa. Nada, mas nada mesmo, vai mudar essa realidade. Ao longo da sua longa vida você foi abordado por centenas de pessoas que te relataram essa realidade que falo contigo pela última vez. Você deixou sua sapiência e racionalidade se imporem à Sapiência e Racionalidade que falavam contigo. Não te deram provas? Claro que não! Que tipo de fé exige provas? Que tipo de mérito ou decisão informada existe em “ver” o manto de Deus passando diante de você flagrantemente teria pra você? Nenhum mérito, e é por isso que a fé é assim: não pode ser comprovada, agora nem nunca. Tem um porém nessa história toda, e é por isso que estou aqui: você não vai morrer eternamente sem ouvir e tomar uma decisão informada sobre sua situação. Você tem que concluir, por sua própria vontade, se crê no que está colocado diante de você ou não.

Não conseguia refletir. Não é racional o que está diante de mim. Não faz parte do meu modo de ser o “crer” sem fundamentar o que penso em fatos e dados. Ah, mas você tá “ouvindo” essa voz e vendo o “cara” aí na frente. Ou não tá? Sim, estou. Só não sei se 15 dias de UTI não fazem isso com a pessoa. Sabe-se lá se levanto daqui e começo a falar e agir como minha avó e sua mania de dizer que “Deus isso, Deus aquilo, Deus é bom, Deus me salvou” e por aí adiante? Não sei, não sei. ‘Não tenho decisão a tomar’ afirmei à voz.

Bem, não decidir é decidir. Pode partir, Carlos. Mas antes, me diga se tem alguma ideia que dia é hoje.

Eu? Nem ideia…

É Sábado de Aleluia“.

Qual Sábado de Aleluia?

O único que jamais existiu“…

2 comentários em “Sheol”

  1. Nunca tinha visto tal termo (Sheol), contudo já ficava claro o seu significado pela simples leitura do brilhante conteúdo do seu artigo.
    Mesmo assim, resolvi fazer pesquisas e encontrei uma fartura de textos a respeito do “local”.
    Temido local.
    Muito poderia agora me alongar sobre as matérias lidas, mas sei não ser oportuno aqui.
    Apenas ao final de tudo que li me deparei com o que abaixo transcrevo.
    “E quem nunca ouviu sobre Jesus?
    A Bíblia não é clara sobre o que acontecerá a quem nunca ouviu sobre Jesus no Juízo Final. Mas Romanos 2:14-15 parece sugerir que quem nunca teve a oportunidade de conhecer Jesus será julgado por sua consciência. Não sabemos como Deus vai julgar essas pessoas, mas podemos confiar que Ele será justo”.

    Aqui fica algo para ser pensado.
    Muito pensado mesmo.
    Imaginar sobre muitos que viveram na origem de todas as coisas, ou seja, os Filhos de Deus por origem e sem qualquer pecado e aqueles que praticaram o pecado original e deram continuidade a ordem recebida de crescerem e semearem a vida de todas as formas a partir de então, está bem clarificado.
    Mas, em algum momento após a expulsão do Santo Jardim, por algum desígnio ou vontade Dele, exemplares humanos teriam partido para remotas partes do planetinha e lá, distantes da Doutrina, continuaram a agir, muitos deles sem as bases espirituais e costumes dos filhos originais.
    Os aborígenes mundo afora.
    Alguns mais, outros menos, praticaram até o canibalismo, por exemplo. A ignorância seria a causa de tais atos, possivelmente.
    Como pensar a respeito?
    Como poderiam ser julgados por “consciência”?

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