Ao longo da minha carreira profissional em Auditoria Independente, já fiz parte de uma firma de auditoria de Primeira Linha (Andersen) e várias firmas e alianças de “Segunda Linha” (Praxity, RSM, Russell Bedford). Indistintamente recebi críticas, de qualquer lado e sob qualquer posição, em qualquer das empresas. Uma porque “despejava um caminhão de estagiário” para fazer o trabalho de auditores, outras porque “não tinham o tamanho e não passavam ‘confiabilidade’ necessárias ao mercado”.
Ouvi isso com muito cuidado e respeito, e, como profissional, com uma doída pontada no fígado, por não expressar o que realmente existe na parte da Contabilidade que se chama Auditoria, e por que os resultados de nosso trabalho às vezes nos fazem dar com os burros n`água junto à opinião pública.
O fato mais clamoroso e mais recente diz respeito às Lojas Americanas (AMER3) e a “maior fraude contábil da história do mundo”, segundo alguns veículos de comunicação.
Mais recentemente, a Dra. Patrícia Punder, indicada como Perita para a AMER3, pelo juízo da Recuperação Judicial, declinou do trabalho pela via de uma argumentação enviesada e francamente (meu julgamento) exangue de conhecimento profissional:
Em entrevista a VEJA, ela apontou a falta de acordo financeiro e, sobretudo, a impossibilidade de trabalhar com uma das quatro maiores empresas contábeis especializadas em auditoria no mundo (Deloitte, EY, KPMG e PwC) como fatores determinantes para a decisão de abandonar o caso. Fora isso, ela também disse que temia por sua integridade física com o desenrolar das investigações contra os acionistas…
https://veja.abril.com.br/economia/o-alerta-da-advogada-que-renunciou-trabalho-como-perita-em-caso-americanas/
A advogada, que não sabemos que nível de conhecimento contábil e de auditoria, especificamente possui (não duvidamos que os tenha), informa que sem uma das quatro maiores firmas de auditoria do mundo não pode investigar os resultados do trabalho de… uma das quatro maiores firmas de auditoria do mundo.
Mais adiante continua da seguinte forma:
Segundo a advogada, a recusa das grandes empresas acende um sinal de alerta no caso. “Isso me preocupa muito, porque eu precisaria ter uma auditoria de primeira linha, pois o caso é muito complexo”, diz ela, afirmando que chegou a contatar auditorias de “segunda linha”, mas que, por questões de confiabilidade, o ideal seria trabalhar com uma das chamadas “Big Four”.
Idem
Dois aspectos fundamentais que eu gostaria de deixar registrado
Primeira ou Segunda Linha
Trata-se de uma demarcação não existente, do ponto de vista técnico, e muito menos no que tange à qualidade do que pode ser feito por uma auditoria “qualquer”, que detenha a técnica necessária. Esta técnica deriva do conhecimento das Normas Brasileiras de Contabilidade de Auditoria Independente de Informação Contábil Histórica (NBC TA) e das Normas Brasileiras de Contabilidade, que, no Brasil, administra (Lei 11.638/2007) o regramento contábil brasileiro, derivado dos IFRS -“International Financial Reporting Standards” (Ou Padrões Internacionais de Relatórios Financeiros).
Quando no Board da RSM, vivemos um embate, na Europa principalmente, contra cláusulas que se chamam “Big Four Only” – são cláusulas em que uma reserva de mercado é criada por agentes do mercado, a fim de que se reconheçam somente as auditorias de Big Four como sendo válidas para chancelar Demonstrações Financeiras/Contábeis.
Importante deixar claro que não há NADA, absolutamente, de minha parte, contra as Big Four – muito pelo contrário – imenso apreço técnico e amizade por vários sócios e profissionais dessas empresas, que realmente são usinas de fabricação de ferramentas de qualidade técnica. Apenas que não são as únicas, e nem sempre estão na vanguarda das inovações. Portanto, não estou aqui tratando de dividir o mercado em “eles” e “nós”. Estamos tratando da inadequada visão – do mercado – de que existe um abismo técnico intransponível entre as firmas e alianças denominadas “Mid-Tiers”, e as grandes firmas. Aliás, o “gap” de faturamento entre elas é cada vez menor em termos percentuais. Cá entre nós, dizer que uma firma de faturamento de USD 8 bilhões é “necessariamente pior” do que uma de (digamos) USD 30 bilhões é o mesmo que dizer que o carro “A” é melhor que o “B” porque a montadora “A” é 10 vezes maior do que a “B”, o que faz menos sentido, por exemplo, quando se tem um carro com um tridente em cima do capô, só pra ficar num exemplo.
Eu não ousaria chamar um advogado de “segunda linha” porque ele não pertence a um mega escritório. Aliás, a profissão de advogado, diferentemente da do auditor, não teve o nível de concentração inacreditável que temos hoje na nossa área. A razão é que os advogados não admitem determinadas práticas chamadas “comerciais” dentro de suas competências, e são zelosos delas, mundo afora. Ao contrário, talvez os maiores juristas do mundo não estejam debaixo de mega firmas, mas sob sua própria luz técnica. Nem por isso dizemos que são de segunda linha.
Caráter Personalíssimo
Um outro fato que talvez passe despercebido do respeitável público é o caráter personalíssimo dos trabalhos, tanto de advogados, como de contadores e auditores. O sócio responsável, e só ele, deveria responder por eventuais problemas e falhas técnicas, devidamente comprovadas. O caso da Andersen, no imbroglio da Enron, é um exemplo clássico dessa máxima. Nancy Temple e David Duncan, sócios da firma, foram apontados como tendo cometido o ato que levou toda uma firma centenária à bancarrota, por perda de sua reputação. A Andersen foi ainda condenada em primeira instância por destruição de provas, o que foi revertido pela Suprema Corte dos EUA anos depois, em 2005. Sob qualquer aspecto, me parece que se trata sempre da relação entre o Sócio Responsável e o Cliente.
É natural que clientes pressionem o auditor independente a ver as coisas sob o seu prisma. E cabe ao auditor independente refutar, quando aplicável, qualquer consideração que não tenha eco na técnica. Quanto a técnica é vaga ou interpretativa, existe latitude para pensar em um lado ou outro do espectro de decisão. Porém, nunca em detrimento da realidade – e, no caso Americanas, em detrimento da verdade a ser dita ao acionista e ao mercado (o próprio Arthur E. Andersen costumava falar seu “mantra” pelas esquinas da firma – “Think clearly, speak clearly” – pense com clareza, fale com clareza).
Pressões
Talvez o que norteie a independência do auditor não seja (creio que não é) o tamanho da organização da qual participa, nem, como alegou a Dra. Patrícia Punder, a existência de tecnologia ou capacidade técnica para tecer julgamento sobre as contas de uma organização do tamanho da AMER3. Com o avanço das técnicas de Big Data, Data Warehousing e Screening de dados, basicamente qualquer auditor, ou grupo de auditores, tem condições de julgar saldos contábeis, independentemente de sua magnitude, dados o TEMPO e o ACESSO adequados. Disso não tenho dúvidas. Tampouco disputo competição técnica com colegas de Big Four. Creio que empresas de auditoria devidamente qualificadas para tal, sejam elas Big Four of Mid-Tier, detenham suficiente conhecimento para liderar – se disposição e incentivo tivessem- equipe de auditoria para cliente de quase qualquer tamanho. A única limitação a ser identificada e leva em conta é a capacidade de atendimento pela quantidade de profissionais disponíveis para tal. Lidero auditorias de alguns clientes com tipos societários como Sociedade por Ações de capital aberto e fechado, sociedades de grande porte, dou as ressalvas necessárias, e não me importo, nem deveria me importar, se um cliente vai me trocar por outro auditor mais bonzinho, por conta de ressalva em parecer de auditoria (conhecido como “parecer sujo”). Faz parte do jogo. Não disputo o fato, mas como Arthur E. Andersen, por volta de 1913 disse “não há dinheiro suficiente na cidade de Chicago pra comprar minha opinião”. Esse é o espírito que deve reinar na profissão.
Particularizando, eu hoje detenho em minha carteira, CNPJs que isoladamente não representam mais do que 5% da receita da minha firma. Se colocarmos grupos econômicos na jogada, talvez uns 7%. É uma exposição alta, talvez, mas nunca a existência sobre os ombros de alguns colegas, na qual um único cliente pode corresponder a 100% da receita comandada por este profissional. Isso sim é poder de pressão de cliente sobre auditor. E isso independente do tamanho da firma. O profissional está mais exposto.
ISQM1 – Recentes Decisões sobre Controle de Qualidade em Auditorias
Não é de hoje que as auditorias lutam com a necessidade de que um responsável técnico esteja sob o olhar atento de outro. Sempre há essa preocupação, justamente pela pressão que alguns clientes exercem sobre o auditor responsável (principalmente quando em problemas!). A recente norma ISQM1, (International Standard on Quality Management 1 (Previously International Standard on Quality Control 1) – Quality Management for Firms that Perform Audits or Reviews of Financial Statements, or Other Assurance or Related Services Engagements: Padrão Internacional de Gestão da Qualidade 1 (anteriormente denominada Padrão Internacional de Controle de Qualidade 1) – Gestão da Qualidade para Firmas que executam auditorias ou revisões de Demonstrações Financeiras, ou serviços relacionados) é o resultado da evolução do processo de controle interno, pelas firmas de auditoria, sobre os resultados exarados para o público.
Implicam na existência de um Sócio Revisor (em alguns lados chamados de Cold Reviewer, ou Revisor Frio), que não participou dos trabalhos, mas detém qualificação técnica e experiência para tal. Difícil dizer se um Revisor extra conseguiria, na maioria dos casos, identificar e trazer à luz casos que se ligam a fraudes, pura e simplesmente, como os casos da Enron, já mencionados, e escândalos ainda maiores, como o da WorldCom, Vivendi, ou mesmo o caso Petrobrás, que sequer foi tratado como escândalo contábil, e que não tiveram repercussões tão duras (o caso da WorldCom sequer tem mais o verbete, sob “Escândalo”).
A Norma NBC PA 400, “Independência para Trabalhos de Auditoria e Revisão”, Seção 410, fala exatamente sobre isso – independência para trabalho de auditoria e revisão. É só ver lá que ficará claro que o regramento existe e é claro suficiente como para permitir que os auditores façam o que é correto para que seu trabalho seja perfeito, tecnicamente.
O fato é que a profissão evolui e tentar evitar que casos como este aconteçam. No entanto, a profissão, como um todo, fica sempre desprotegida em casos de fraude, pura e simples, já que não é função de auditores independentes investigar fraudes, ou dar conta de situações nas quais foram levados a cometer erros não intencionais, por conta de malversação de dados ou fundos.
Falar com Clareza
Ao escolher falar com clareza, o auditor está sujeito a pressões de seus contratantes e dos seus pares, contadores, dentro das organizações. A alternativa, de ter uma auditoria totalmente “estatal”, como alguns apregoam, é ainda pior – vide o número de escândalos que o poder público é submetido, dia a dia, e a dificuldade de apura-los.
A outra alternativa, à francesa, de ter dois auditores independentes atuando simultaneamente, parece não ter surtido muito efeito ao longo dos anos. Vide o caso Vivendi, já mencionado, no qual dois auditores não conseguiram trazer a público os fatos, e falar com clareza.
O que não podemos como profissionais contábeis aceitar são as alusões a “pequenos” e “grandes” auditores, “primeira” e “segunda” linhas, como se fosse o tamanho de uma organização que determinasse sua capacidade de falar a verdade. Entendo que não o é. Ainda, nós auditores podemos e devemos defender as prerrogativas da nossa profissão, contra a predação constante de outros, interessados sempre nos resultados que a falta de clareza ao falar possa gerar de benefícios ao seus clientes – não falar de um passivo não registrado, não falar de uma ação cujo ganho é menos que certo, não falar que tal ou tal ativo está super ou subavaliado, entre outros casos comuns.
Lidar com pressão tem que fazer parte do treinamento do sócio responsável por uma auditoria. Existência de ressalvas também pode e deve ser parte da vida de companhias – inclusive de capital aberto, a fim de que o público possa julgar até que ponto detêm informações suficientes para tomada de decisões.
À Dra. Patrícia, apenas desejo que ela segregue os fatos em seu julgamento, e não submeta sua opinião ao público sem uma reflexão mais profunda. Sobre o medo pela própria vida e dos familiares, é algo pessoal e intransferível. Desejo a ela e a todos os profissionais nesta situação, muitas bênçãos e proteção.