Sou filho de um professor de Português e de uma professora de matemática. Nasci e cresci em um ambiente acadêmico, portanto, tendo sido apresentado às letras e números desde muito cedo (minha mãe diz que eu falei muito cedo e que li muito antes de entrar no jardim de infância… coisas de mãe coruja…). Pra mim, avaliar a possibilidade de não saber ler ou contar é algo muito difícil. Só consigo avaliar isso através de pessoas que não sabiam, até certo tempo, e aprenderam – tiveram portanto, tempo de vida que lhes permitiu avaliar a falta que letras e números fazem…
Hoje, dia do professor, somos uma nação que resolveu fazer do ensino uma piada de mau gosto, e do professor um instrumento de luta ideológica. Deixamos de lado o significado das coisas e o exercício mental, a disciplina de aprender algo (aprender custa e cansa) para enfiarmos na cabeça de nossas crianças somente coisas que convêm a um segmento político ou outro, interessados numa massa de manobra para fins específicos de mantê-los nesse poder.
Estamos cansados de ver posts de professores apanhando de alunos, de execração de Paulo Freire, de alunos quebrando salas de aula… tudo isso satura e acaba por nos dessensibilizar para a realidade mais triste. O aprendizado mesmo.
Professores
Agradeço a Deus os professores que tive, e os pais que além de pais, foram mestres. Agradeço pela sinceridade com que ensinavam, e o interesse total em que aprendêssemos. Agradeço, em suma, pela paciência infinita com que ensinavam a todos, retirando desníveis ao longo do ano letivo, fazendo-nos chegar a um bom porto, ao final dele, com todos sabendo o mínimo necessário para “passar de ano” por méritos próprios, e “repetindo” os que não tiveram tal mérito, sem ofende-los, diminui-los, mas fazendo-os reconhecer que falharam.
Agradeço a Deus por ter me dado um mínimo de capacidade de aprender a aprender, a a me ensinar coisas que doutra forma me levariam a continuar a errar nos mesmos lugares ainda hoje. Arrogância devidamente domesticada, interesse pela leitura maximizado, interesse por coisas novas sempre alto, interesse por detalhes cada vez maior, sigo tentando ser melhor, para meu Deus e para meu próximo, lembrando lá de trás, de Tia Ângela, Tia Madalena, Tia Guilhermina, Tia Solange (in memorian), e tantas outras “tias e tios” (as “profe” daqui de Curitiba) que me ensinaram a pensar.
Aos pais-professores, Ivanir e Ruth, cujo amor ao ensino os levou aos estertores, lutando dia e noite por uma educação melhor e mais universal, sem meias verdades, sem aprovações automáticas, sem “medalhas de participação”, cultivando a disciplina e o mérito, sem varrer a incompetência para baixo do tapete oficial, nem se curvarem ante modismos que pouco a pouco acabaram se tornando a educação que vemos hoje – ou a falta dela.
Tias professoras, Dalva, Marly, Chirley, Neide, gente que dedicou toda uma vida a pegar na mãozinha de crianças de 4, 5, 6 anos, ensinando as primeiras letras com uma paciência de Jó.
Creio que ver profissionais, médicos, professores, advogados, engenheiros, contadores, fazendo a diferença no mundo deve ser boa recompensa por tanto amor ao ofício.
Não custa, porém, lembrar que o sacerdócio de professor precisa ser recolocado no pedestal que merece, longe do alcance dos políticos e dos “dominadores do idioma”.
Língua e Significado
Aldous Huxley já falava que “O progresso científico e técnico depende do hábito empírico do raciocínio, que não pode sobreviver numa sociedade estritamente regimentada.“. A ideia de educação, como me foi passada, estava fundamentada na “capacidade de aprender”. Minha escola pública, hoje tão depredada e desprezada, me ensinou a “aprender a aprender”. Quando fui para a universidade, eu já sabia que estava virtualmente sozinho nessa guerra interna da “Ordo ab Chao”. Era minha responsabilidade – que eu havia a duras penas aprendido de meus primeiros mestres – a aprender. E por ter aprendido a aprender, me tornava cada vez menos dependente de alguém que me dissesse o que era certo e errado. Isso me tornou, à uma, arrogante, e à outra, independente (na cabeça). Arrogante porque aprendi a discernir coisas mais cedo do que a maioria, e por isso mesmo, imaturo suficiente para não saber quando calar, quando esperar para responder, ouvir mais. É uma característica difícil de domar e que habita alguns espíritos mais espertos do que sábios. Independente porque não ligava tanto para o que pensavam de mim, o que reforçava, por outro lado, a ideia de que era arrogante. Em síntese, um caos sobre o qual colocar ordem foi muito difícil.
A língua, porém, foi o trampolim para essa capacidade de aprender a aprender. Foi por ler e entender o que lia que eu ia conseguindo interpretar o que estava diante de mim, dando tempo para ruminar o que entendia, e a formar conceitos a partir daí. Minha grande forma de entender o mundo sempre foi a palavra escrita, a despeito dos meus pendores matemáticos. Números sempre fui capaz de manipular com alguma destreza, mas eram símbolos que não falavam ao meu coração. Música (escrita) também nunca entrou no meu coração como no da minha esposa, Aline, por exemplo – sei onde é o fá, o sol, o mi, sei o que é um sustenido, um bemol, sei o que é um compasso, uma clave, uma pausa, mas nada disso “fala no meu coração” como a própria música. Pura preguiça de aprender essas duas línguas como deveria – matemática e música.
Língua sempre foi a palavra. E percebo que o domínio sobre a palavra escrita é liberdade. E aí é que mora o perigo da sociedade atual
Letra Cursiva e Domínio do Conceito
Ouvi de um amigo querido, executivo da área de educação, que achava que ensinar a criança a escrever à mão havia se tornado desnecessário. Dar um teclado e ensinar a digitar era suficiente.
Num mundo sob perpétua ameaça de crise de energia, confiar exclusivamente na capacidade de teclar, sem máquinas totalmente mecânicas, manuais, me parece burrice, retruquei.
O fato é que confiamos tanto na tecnologia da informação que esquecemos que todo o conhecimento está sendo confinado em “conventos digitais” os quais podem-nos ser fechados para sempre pela simples falta de corrente elétrica ou manutenção; ferrugem e infiltrações correm o risco de acabar com a civilização mais cedo do que uma guerra atômica.
Enquanto a eutanásia cultural coletiva não vem, assistimos diante de nós, impassivos, à destruição do significado.
Destruição do Significado
Já que não consigo matar de fome, mato empanturrando… Num tempo em que a quantidade de conhecimento acumulada cresce exponencialmente, nossa capacidade de participar desse banquete intelectual de forma controlada e civilizada decai a olhos vistos. Já não conseguimos saber os limites do que é correto, e estamos diante de uma campanha para nos soterrar de informações, úteis e inúteis, e todas, por fim, inúteis, por não sabermos mais a distinção entre elas.
Some-se a isso o fato de que as palavras estão tendo dois destinos: a perda do significado original e a criação de interpretações ofensivas por parte de qualquer um que se sinta ferido por algo que, creio, muitas vezes não sabe sequer interpretar.
Um grande amigo me dizia que chamou um colega de trabalho de “Apedêuta”, ao que o amigo lhe agradeceu muito o “elogio”. Fantástico! Da mesma forma, ao chamar o amigo de “Negão” (o que o cara é, porque enorme, com 1,90m e pele chocolate escuro) soa ofensivo a alguns (no caso, não ao destinatário do carinhoso apelido). Eu posso agradecer por ser incapaz de aprender algo, e ficar extremamente irritado porque alguém chamou um amigo negro de “negão”.
A candidata a juíza da Suprema Corte americana, Amy Coney Barrett, católica, 7 filhos, carreira brilhante, teve que se desculpar por ter usado a expressão “Opção Sexual” para se referir à homossexuais. Deputados de oposição ao governo que a nomeia disseram que a expressão é “homofóbica” e que ela deveria pedir desculpas à comunidade LGBTQ (!). Em dias de patrulha linguística, a liberdade de dizer que entende que existem opções sexuais é um pecado mortal. Ora, pensar se torna um pecado mortal em uma sociedade como a nossa.
A língua é o veículo de escravização mais efetivo que existe hoje, na minha opinião. Na verdade, uma linguagem patrulhada e tornada objeto de apenas alguns tipos de manifestação, tornam a sociedade muito menos capaz de pensar e ter independência. No fundo, se você controla a linguagem, controla a sociedade – como alguém já disse em algum canto, que não me lembro.
Que sigamos pensando, bem ou mal… afinal, como dizia Millôr Fernandes no Pasquim, “Livre pensar é só pensar“…