Pertenço a um grupo de executivos que se reúne mensalmente e debate sobre temas diversos. É como um “Conselho de Administração” coletivo, privado, em que temos a oportunidade de nos apoiar uns aos outros, e usar as experiências coletivas para ajudar e apoiar os outros. É muito bom.
Na base dos “guidelines” do grupo está uma orientação para nunca darmos a nossa opinião, mas contarmos experiências e deixar que o outro chegue a conclusões por si só. Seria uma forma de não ser intrusivos, e não darmos uma de “professor de Deus” aos outros. Confesso que com minha natureza voluntariosa, e profissão, tenho a tendência de sair imediatamente dizendo “se eu fosse você…”. Isso é algo radicalmente contra a tal diretriz.
Recentemente me deparei com um artigo num editorial chamado “Quillette” (www.quillette.com) extremamente interessante, e que dá uma entonação muito diferente ao conceito de “intromissão” e discordâncias. Se chama “Quando discordância se torna trauma” (tradução livre) e pode ser encontrado no link https://quillette.com/2022/05/08/when-did-disagreement-become-trauma/.
O subtítulo é bastante revelador sobre o tema: “How does one deal with those who claim that debate itself represents an agony beyond human endurance?” (“Como é que alguém lida com aqueles que dizem que o debate, em si mesmo, representa uma agonia além da resistência humana?”
A Universidade da Columbia Britânica gestou, por anos, um documento chamado “Anti-Racism and Inclusive Excellence Task Force Report” (Relatório da Força-Tarefa Anti-Racismo e Excelência Inclusiva”), seja lá o que isso de fato signifique. É um calhamaço de 300 páginas em que os acadêmicos defendem o que têm defendido já há alguns anos, e que define um termo: “Truthing” (eu traduziria por “verdadear”, mas o Google traduz como “veracidade”). O termo, vejam, não trata da “verdade” em si, e é definido como
“o ato de afirmar verdades sobre assuntos considerados de conhecimento difícil e/ou perigoso, em contextos de hiperpoliciamento, vigilância e microgerenciamento de organizações racializadas… , e censura que acompanha a veracidade do assunto enquanto simultaneamente aborda as relações de poder e as injustiças que interrogam ativamente o desconforto, a negação, o direito à negação, o apagamento e a censura que acompanha a verdade do assunto.”
Força-Tarefa Anti-Racismo e Excelência Inclusiva da BCU
Fugindo da discussão
É um tremendo esforço para dizer que não se pode expressar ideias, creio eu. Discutir, em “bolhas”, se tornou sinônimo de pecar. Fora da Bolha também. Dentro da Bolha, discutir significa desagregar, por esta definição; significa querem criar caso. Fora da Bolha, significa perda de tempo, num ambiente em que só nos cabe “cancelar” o outro por pensar diferente.
Não se trata de um lado, outro lado, esquerda, direita. Nada disso. Qualquer lado neste mundo tem usado essa mesma abordagem quando algum assunto entra em discussão. Eu concordo? Não discuto; eu discordo? Eu xingo. Não transijo, não tento entender o outro, não promovo o progresso do pensamento. Cancelo e vou-me embora pra Pasárgada, feliz e justificado…
Em síntese – sinta-se bem. Não raciocine nem se preocupe em fingir que se preocupa.
Safe Environments
Volto ao tema inicial – o meu grupo de amigos: estamos no meio do caminho. Não deixamos de discutir; não discutimos, porém. Não damos opinião direta mesmo que instados a isso. Somos os “Ambiente Seguro”. Não que eu me orgulhe disso. Como (supostamente) pensador, gosto de me dar ao luxo de pensar nas coisas – e escrever sobre elas – sob um ponto de vista que muitas vezes até eu mesmo tenho preguiça de fazer, quando em companhia de terceiros.
Gosto, portanto, de pensar que talvez estamos diante de uma incapacidade crescente de contrariar o outro – isso torna o ambiente “unsafe” por expressarmos o que pensamos. As “turmas do deixa-disso”, que antes eram circunscritas às brigas a socos e pontapés, agora interfere em qualquer discussão que passe de uma sequencia de concordâncias – qualquer sinal de que vai “acalorar”, mesmo que da forma mais positiva possível, é motivo para ess turma agir, mudar de assunto, e falar de algo mais light, como futebol, praia, e o tempo.
Eu me vejo de quando em vez sendo “apartado” de discussões como nos tempos do pátio do colégio público de Cordeiro, RJ, quando “rodava a baiana” com alguém, ou alguém o fazia comigo. Discuto e sou tangido a não fazê-lo, e principalmente não me aprofundar em qualquer assunto, mesmo que a coisa possa desaguar em soluções ou apoio legítimo.
Que ambiente “seguro” eu quero, no campo da discussão, “papo cabeça” mesmo, coisa de amigo que bebeu mais do que devia e abre o coração para o outro, que, por também estar doidão, aceita as provocações e conselhos na boa, sem filtros? Eu quero um ambiente em que eu não seja “coagido” mentalmente?
enquanto simultaneamente aborda as relações de poder e as injustiças que interrogam ativamente o desconforto, a negação, a negação, o apagamento e a censura que acompanha a verdade do assunto.
Uma parte do artigo que me choca – mesmo em se tratando do Canadá de Trudeau:
Essa alergia ao desacordo é agora uma característica crescente da vida intelectual em todo o Canadá. Na Mount Royal University, em Alberta, por exemplo, o sindicato dos professores recentemente enviou duas páginas de instruções detalhadas sobre como os professores deveriam se comunicar uns com os outros em um próximo retiro de primavera. Na mensagem de e-mail, vazada para mim por um membro do corpo docente exasperado, o sindicato alertou os membros que as discussões no retiro “podem alcançar o envolvimento em espaços corajosos, embora não totalmente seguros”. A fim de “minimizar os danos”, os participantes foram aconselhados a “falar de nossa própria experiência e não invalidar as experiências dos outros”. Foi-lhes garantido que os moderadores expulsariam qualquer um que violasse intencionalmente essas regras e confortariam aqueles que fugiram de discussões “prejudiciais”. Também havia instruções detalhadas sobre como delatar colegas sindicalistas que se envolveram em falar errado – inclusive por denúncia anônima. Tomado como um todo, o documento é um aviso para todos de que qualquer pessoa que discorde de alguém sobre qualquer coisa pode estar em risco de vergonha pública e sanção oficial.
Johnathan Kay in https://quillette.com/2022/05/08/when-did-disagreement-become-trauma/
Me chama atenção aqui o paralelismo entre a visão de “minimizar os danos”, os participantes foram aconselhados a “falar de nossa própria experiência e não invalidar as experiências dos outros” e a situação que convivemos em nosso ambiente de discussão.
Ora, qual é, então, o limite que o outro está disposto a aceitar para crescer? Isso, obviamente, é decisão de cada um. Sempre se pode levantar e ir embora, se algum limite severo tiver sido ultrapassado. Não interessa que o outro tenha tido a melhor das intenções. Os incomodados que se mudem, dizia-se antigamente. Já não é assim – os incomodados, hoje, mudam a maioria, mudam o mundo, mudam os costumes, os hábitos. Exigem serem chamados de “elxs” ou “querid@s”, exigem ser reconhecidos como negros, sendo brancos, gato, sendo gente, e muito mais.
E agora?
Um texto que recebi recentemente, de um tal
faz um paralelo interessante entre o QI médio da população e a quantidade de palavras usadas, ou habituais. Reproduzo porque é muito interessante:
O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde o pós-guerra até ao final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos. É a inversão do efeito Flynn.
Parece que o nível de inteligência, medido pelos testes, diminui nos países mais desenvolvidos. Pode haver muitas causas para este fenómeno. Um deles pode ser o empobrecimento da linguagem.
Na verdade, vários estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da linguagem: não é apenas a redução do vocabulário utilizado, mas também as sutilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos.
O desaparecimento gradual dos tempos (subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento: incapaz de projeções no tempo.
A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento das letras maiúsculas e da pontuação são exemplos de “golpes mortais” na precisão e variedade de expressão.
Apenas um exemplo: eliminar a palavra “signorina/senhorita/mademoiselle” (agora obsoleta) não significa apenas abrir mão da estética de uma palavra, mas também promover involuntariamente a ideia de que entre uma menina e uma mulher não existem fases intermediárias.
Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento. Estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções em palavras.
Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível.
Quanto mais pobre a linguagem, mais o pensamento desaparece.
A história está cheia de exemplos e muitos livros (George Orwell – “1984”; Ray Bradbury – “Fahrenheit 451”) contam como todos os regimes totalitários sempre atrapalharam o pensamento, reduzindo o número e o significado das palavras.
Se não houver pensamentos, não há pensamentos críticos. E não há pensamento sem palavras. Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação com o futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e a sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, realmente aconteceu?
Caros pais e professores: Façamos com que os nossos filhos, os nossos alunos falem, leiam e escrevam. Ensinemos e pratiquemos o idioma nas suas mais diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se for complicado. Porque nesse esforço existe liberdade.
Aqueles que afirmam a necessidade de simplificar a grafia, descartar a linguagem dos seus “defeitos”, abolir géneros, tempos, nuances, tudo que cria complexidade, são os verdadeiros arquitetos do empobrecimento da mente humana.
Não há liberdade sem necessidade. Não há beleza sem o pensamento da beleza.A gramática é a expressão da linguagem. A linguagem é a expressão de pensamento. O pensamento é a expressão de Deus no homem….
Christophe Clavé
Palavras são tão importantes que deveriam ser mais usadas. A pobreza de vernáculo certamente traz consigo a burrice. Não que a riqueza traga necessariamente a sabedoria (um amigo querido costumava chamar um imbecil conhecido de “uma diarreia de palavras e uma prisão de ventre de ideias”). O fato é que os Safe Environments do presente estão deixando as universidades e entrando em nossas casas, via chats, via mídias sociais, via boca de filhos e de pais. Com os Safe Environment está vindo o medo patológico de discutir ideias das quais se discorda.
Pobre mundo.
Amigo e irmão Wesley, amei o seu texto, provocador, contemporâneo.