Um livro comprido, meio chato, mas de fundo histórico inegável (“Patrician of Rome”) li sobre o cerco de Roma pelos bárbaros Volsci, ainda no nascedouro da República Romana, por volta de 384 aC. e a sua defesa heróica pelo patrício (nobre) Senador Marcus Manlius “Capitolinus”. O nome “Capitolinus” foi, inclusive, uma honraria garantida pelo Senado romano ao defensor justamente do Monte Capitolino, onde ficavam os órgãos do governo da Roma republicana, a Curia (Senado), os templos, as cortes de justiça etc.
Menos de 4 anos depois, esse mesmo Senador Manlius Capitolinus era lançado de cima da Rocha Tarpeia, local de execução reservado aos criminosos mais terríveis, e traidores da pátria. A razão era simples: considerado o primeiro “populista” por Suetônio, o historiador romano da antiguidade, Capitolinus havia se aliado à “plebe” na restituição de seus direitos básicos, retirados durante os duros anos pós destruição de Roma pelos Volsci. A plebe havia se endividado junto aos usurários da cidade e seus senadores mais ricos, e haviam sido ajudados por Capitolinus a sair das dívidas, com a venda, inclusive de seu patrimônio pessoal.
Os moradores dos “Mons” (montes ou colinas romanas) eram os patrícios. A plebe morava na planície entre os montes. Quem visita Roma conhece bem essa geografia linda. Os patrícios (não todos, uma minoria, na verdade) eram muito ciosos de seus “direitos” sobre a plebe, e a extorquia, pela via da usura, dos altos preços do trigo e outros alimentos. Um par de Consules (sempre eram dois, eleitos a cada ano) passavam legislações que lhes beneficiava muito. Se uniram a gangues de regiões mais obscuras da cidade, como a Subura (que voltou às telas recentemente numa série de TV), e deixavam que essas aterrorizassem a população, exceto os ativos e negócios dos senadores. A cobrança de tributos passou a ser de tal forma desigual, que, somada à insegurança e à falta de incentivo para trabalhar e empreender, gerou uma revolta da plebe.
Olhando de fora, parece algo bem similar ao que ocorre hoje em vários países do mundo. Elites “senatoriais” se unem a bandos armados de foras-da-lei, deixando-os aterrorizar uma população desarmada (sim, era proibido portar armas na Roma antiga). O resultado foi um “El Salvador” da antiguidade – acabaram por eleger um “Ditador” (por ironia, via Senado). O velho general e senador Marcus Camilus, chamado “o segundo fundador de Roma”, pela derrota pós invasão dos Volsci pelas legiões sob seu comando. O general acabou por resolver dois problemas – acabou com a revolta da plebe, que de fato nunca aconteceu exceto verbalmente (como certos eventos recentes no Brasil) e acalmou os ânimos do Senado, colocando lá nomes melhores. A história, bastante difícil de precisar, devido à falta de dados históricos de qualidade, dá aos dois nomes posições de destaque. Os senadores opressores, de nomes Lucius Valerius Potitus Poplicola e Marcus Furius Camillus, passaram à história como o lado negro da força.
Em tempos de crise, tanto na Roma antiga como na Grécia Clássica, tempos difíceis ensejavam a escolha de um “Ditador” para conduzir o país sem ter que prestar contas a milhares de burocratas. Era um imperativo do momento de crise. Como bem definido por Maslow, e hoje, claramente, descrito pelo articulista Luciano Trigo no seu texto O exemplo de El Salvador (https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/luciano-trigo/o-exemplo-de-el-salvador/), o povo salvadorenho fez uma opção daquelas que não há justificativa moral para recriminar: entre viver e morrer, é preferível viver, afastando momentaneamente todas as considerações de caráter menos imediatas, como comer, obter auto-realização, entre outras. El Salvador acaba de retomar essa mesma atitude, reelegendo o estranho Bukele com 85% dos votos, para raiva e desespero de uma mídia que, não se entende bem por que, exalta mais a criminalidade do que seu combate.
As semelhanças dos dois locais, separados por 2,5 mil anos de história e uns 10 mil Km de distância são marcantes. Bukele é, para todos os efeitos, um ditador, escolhido por uma população amedrontada, para por fim a um reinado de terror imposto pelo narcotráfico desde 1987. Pode-se não gostar, mas é bastante revelador do momento que vários países da América Latina vivem. Pergunte a qualquer carioca de classe média ou média baixa, ou mesmo muitos de classe média alta ou alta, se não concordariam com mais segurança, mesmo que isso significasse mais presídios e mais condenações, menos saidinhas de fim de ano e outras benesses, e verão que a lógica é a mesma.
Bukele encarna um ditador que traz soluções aos males imediatos. E com a queda do número de homicídios de 100 para 7, por cada cem mil habitantes, é reveladora do nível de eficiência alcançado. Bukele chama alguns governantes da região de “amigos de bandidos”, e tem razão. Temos amigos de bandidos em muitos locais. Os senadores romanos eram amigos de bandidos, já em 384 a.C. Poderosos sempre tenderão a se aliar a bandidos, se isso os beneficiar. Para alguns tipos de pessoas, aparentemente não há nunca dinheiro suficiente, ou poder suficiente. Mais é sempre mais, e sempre justificará quase qualquer atitude, por mais errada que seja.
Tivemos nosso momento “ditatorial” segundo alguns, na pessoa do ex-presidente Bolsonaro. Não me parece que foi minimente hábil como para se reeleger. Cometeu quase todos os erros da cartilha política, e cedeu, em momentos cruciais, ao establishment, como aliás, fez Macri, ex-presidente da Argentina, o qual, igualmente, pagou com a derrota na tentativa de se reeleger.
De ditador, pouco tinha. Mas assim ficou marcado pela narrativa que ora atribui a ele até mesmo o desastre de Chernobil, ou a Covid-19. Esperamos o nosso “ditador”? Eu preferiria que o bom senso e o equilíbrio entre poderes seja retomado no país, e que independentemente de ideologias, a paz e a segurança sejam restabelecidas, assim como uma justiça minimamente sã. Difícil acreditar nisso a curto prazo.
Vivamos com a esperança de que um ditador não seja necessário, e que momentos que levam a uma ditadura não sejam vividos. São coisas tristes demais para serem sequer cogitadas, mas às vezes inescapáveis.
Muito bom o seu artigo. Muito instrutivo e desafia aos que ainda conseguem ler um livro sem pegar no sono logo em seguida a buscar algo assim para ler.
Por aqui, Rio de Janeiro pelo menos,
um bom ditador romano seria mais que bem vindo há tempos…