Seu João, o Apátrida
O avô da minha esposa, Sr. Jon Friesen, era de origem alemã, menonita. Nasceu na Sibéria Central, Rússia, no início do século XX. Com o advento (tragédia) da Revolução Bolchevique, os menonitas, cristãos, tiveram que se mudar de lá, fugidos, atravessando o Rio Amur, da Sibéria para o norte da China. Toda a família foi – pai, mãe, filhos, tios, tias, primos, e tudo o que tinham de possessões terrenas, em cima de carroças com esquis, feitas trenós. Passaram quatro anos (acho) para atravessar toda a China, então um “protetorado do Reino Unido”, até chegar a Shangai, e de lá num barco para Marselha, na França, onde uma sociedade de apoio aos migrantes menonitas os indicou dois destinos possíveis – Brasil ou Canadá. Parte da família escolheu Brasil, parte Canadá. Até hoje existem menonitas de nome Friesen (que é bem comum) em ambos os locais, aparentados.
O Sr. João (o Jon ou Ivan) entrou no Brasil como “Apátrida”, com um documento emitido pela Liga das Nações (creio, também), antecessora da ONU. Tive esse documento nas mãos, e creio que meu sogro, Heinrich Friesen, ainda deve ter em algum lado, ou a Tia Gertrude Friesen Dyck. Foi meu primeiro contato direto com o termo Apátrida – “sem pátria”. Ora, Seu João, a quem conheci bem, nos anos 90, tinha cara de “russo”. Falava um tantinho de russo, além do Alemão (Hoch Deutsch – o “Alto” Alemão, de Goethe e Schiller) e o Plötisch (ou Platt Deutsch, “alemão amassado” (Sic!) ou dialeto dos “alemão russo” como falam ainda hoje aqui perto, na colônia menonita de Witmarsum). Era russo, mas não era russo. O pai nasceu, até onde sei, na Península da Criméia, que já foi Rússia, já foi Ucrânia, já foi Rússia, já foi Ucrânia… e hoje é Rússia, de novo, meio que na marra). Não era Ucraniano. Não era Alemão (Friesen significa originário de Friesland, que tem Ost-Friesland e West-Friesenland, região do norte da Alemanha e Holanda, de onde vem a mistureba que chamam de Plöttisch…).
Seu João nunca se naturalizou brasileiro. Morreu Apátrida, portanto. Bom, eram os tempos dos documentos de papel, dos passaportes falsificáveis (hoje ainda são…) e das encrencas de fronteiras, que ainda existem naquela parte do mundo. Ao que me consta nunca teve problemas aqui. Aqui casou, criou os filhos, possuiu terras, e até se aposentou, e morreu. Está enterrado na Colônia Nova, em Nova Aceguá (antigo distrito de Bagé-RS) e em paz descansa, com o Senhor.
Da Sibéria para a Nicarágua
Ser apátrida por contingências é algo triste, até certo ponto. Depende de uma nação acolhedora, como eram o Brasil e o Canadá de então (e ainda são) para receber e dar uma vida digna a esses imigrantes pobres e sem bandeira.
Ser apátrida por decisão de um Estado Nacional é coisa que dificilmente se vê. Eu vejo histórias de “banimento” feitas por monarcas absolutistas de até o Século XVIII. Depois disso nem sei se o fato voltou a existir. Os absolutismos foram sendo reduzidos e os banimentos se tornaram muito raros. Depois da 2a. guerra mundial, nem sei como anda isso. Não sou expert em política migratória internacional, mas tendo a pensar que quase nada assim acontece. Nações desenvolvidas acabaram com isso.
De repente, surge um sujeito do 3o. mundo, com cara de caudilho analfabeto, e começa a retirar cidadania de seus paisanos. Um bispo aqui, um escritor ali, uma ativista de direitos humanos acolá… e isso parece que não incomodou ninguém, nem no mundo dito civilizado, por um bom tempo. Parece que começa a incomodar agora. Até mesmo no nosso Brasil varonil, de triste governo e tendências autoritárias. Parece que a dose foi demasiada, até mesmo para gente pouco dada à democracia, como os que temos no poder, antes e agora.
Ora, o que significaria ter sua cidadania, seu direito a um país, a uma bandeira, caçados por decisão do chefete de estado de ocasião? O que dizer ao mundo, se você agora se vê sem direito algum, em sua própria terra, da qual detinha um passaporte, cantava o hino e, no fim das contas, amava e ama?
O cidadão perdeu seus direitos, e não sabe para onde vai. Países latinos um tantinho menos ditatoriais, como Chile, Colômbia, México, outros nem tanto, como Argentina e Brasil, e até nações europeias, como Espanha (que, afinal de contas, criou essa confusão toda aqui) ofereceram asilo aos cidadãos (nenhum deles culpado de nada, exceto discordar do ditador). Como esses apátridas se sentirão aqui? Aliviados, como Seu Bernardo, pai do já descrito Seu João Friesen, por ter alguma terra para cultivar e paz para crer em Cristo? Ou frustrados por ter que receber um passaporte que não é o seu, de uma terra que não é a sua, cantar um hino que não é seu e tentar amar uma terra com a qual tem pouca afinidade?
Quem parará o ditador? Qual é o limite que precisa ser rompido, que lei internacional quebrada, que artigo da Convenção de Genebra burlado, para que o mundo se aborreça a ponto de intervir? Será Daniel Ortega melhor que Manuel Noriega, cujo Panamá se viu envolvido no quebra-pau com os EUA? Será que é preciso um Canal do Panamá para que alguém se digne a intervir?
O mundo está deixando de tomar atitudes por razões éticas, cada vez mais. Ah… isso sempre aconteceu, dirão os puristas. Sim, claro. Trata-se, porém, da frequência e natureza das infrações, e da qualidade e força das intervenções. Eu vejo um gráfico apontando uma queda cada vez mais forte tanto na frequência quanto na intensidade das intervenções.
Hutus mataram um milhão de Tutsis, em Ruanda, depuseram seu monarca, e o mundo olhou. As manchetes não tinham um milésimo da indignação que o holocausto até agora gera. Uganda foi inundada de refugiados Tutsis, que devem estar por lá até agora. Apátridas, todos, na prática, senão na documentação.
Eu e você, cristão, conservador ou pelo menos amante da família nuclear, de pai e mãe, corremos o risco de sermos os novos apátridas, em algumas décadas, ou anos? Eu tenho a distinta impressão que sim. E tenho também o distinto medo de que ninguém virá em nosso socorro.