Uma música que gosto muito, de uma das minhas bandas favoritas dos anos 60 e 70, Crosby, Stills, Nash & Young, tem uma letra melodramática mais ou menos assim:
“This old house of ours is built on dreams
And a businessman don’t know what that means.
There’s a garden outside she works in every day
And tomorrow morning a man from the bank’s
Gonna come and take it all away.”
(“Essa nossa velha casa é cheia de sonhos
E o homem de negócios não sabe o que isso significa.
Tem um jardim lá fora onde ela trabalha todo o dia
E amanhã cedo um homem do banco vai
Vir e levar tudo embora”.)
A música fala de uma situação comum nos EUA, principalmente nos tempos de crise, como foi a de 2008 (Sub-prime) – “foreclosure” ou retomada por falta de pagamento. Cercada por uma melodia lindíssima, cantada por caras descolados, meio hippies, povo do “paz e amor”, a letra arrepia os corações mais ternos, e leva a pessoa a odiar “o homem do banco” e o “homem de negócios”.
No filme Dr. Jhivago (Jivago?), o protagonista, Omar Sharif, numa noite gelada de Moscou, sai na rua quebrando pedaços de cercas de madeira pra queimar na lareira, em casa, pra evitar que a família morra de frio. O meio-irmão de Yuri Jhivago , um general do exército bolchevique, chega por trás dele e o surpreende no ato do “roubo”. Yuri argumenta que é um pai de família cuidando da sobrevivência dos seus. O general, numa linha maravilhosa do autor, Boris Pasternak, o autor, diz “um russo buscando lenha pra aquecer a família… uma visão enternecedora… um milhão de russos buscando lenha pra aquecer suas famílias nas cercas de Moscou, uma visão aterradora“…
Tudo isso aí pra dizer que invariavelmente a realidade é mais complexa do que os olhos vêem, e mais complexa do que algumas mentes, mesmo muito inteligentes, conseguem fazer sentido. Se as melhores mentes têm essa dificuldade, imaginem nós, mortais.
Vivemos num desses momentos, em que a realidade não é apenas complexa, mas está sendo tornada mais complexa do que o necessário, por um turvar de águas impressionante e deliberado. Tanto do lado do governo federal quanto dos outros dois poderes, mas principalmente da imprensa, o interesse na clareza sumiu, dando lugar ao que foi dito na célebre frase “a primeira vítima de uma guerra é a verdade”, atribuída ao senador americano Hiram Johnson.
Tanto Jhivago como Neil Young tinham posturas e visões que contemplavam seu mundo imediato, e faziam todo sentido para eles. Como na contradição estabelecida entre a física nuclear e a quântica, o que funciona muito bem no micro, parece nem sempre funcionar no macro.
E não é só no Brasil. Parece ter-se tornado um fenômeno mundial. Começando com o turvar de águas provocado pela China, ao restringir o acesso a informações sobre a COVID-19 por mais de 1 mês, cooptando inclusive a OMS no baile, até o momento atual, onde forças antagônica se batem pela primazia das informações, estamos perdidos num mar de “fatos” contraditórios. Pessoas inteligentes brigam entre si, alegando que o outro lado despreza “a ciência”. Ninguém mais sabe o que é ciência. A ciência de Fevereiro estava sumarizada, sem direito a contestação, a um “paper” do Imperial College, de Londres, dando conta do um número astronômico de casos de COVID-19 que transformaria a Peste Negra numa “gripezinha”. Mais recentemente, um teste, aparentemente revestido de “rigor científico” informa que a Hidroxicloroquina “Não funciona”… é a “ciência” do momento, e contra ela, se falarmos seremos queimados na fogueira da nova inquisição.
De outro lado, a fé extrema na Hidroxicloroquina faz coro com outra “ciência”, esta baseada da observação de alguns casos de cura aqui e acolá, também sem dar tempo para que houvesse “peer review” (revisão pelos pares) ou confirmação. Ciência é algo de longuíssimo prazo, uma coisa que se aprende a duvidar, mesmo quando um sábio como Isaac Newton propõe algo. Abaixar a cabeça à “ciência” não é algo que se deva fazer, senão relutantemente.
Mas e a complexidade? Continuamos a tratar assuntos complexos com abordagens simples. Afinal, devemos ou não nos trancar em casa? Devemos ou não dar importância capital aos efeitos econômicos da pandemia?
Quem até o momento chegou mais próximo de uma postura cientificista, pelo menos, foi o ex-ministro Teich, numa entrevista à Globonews, em que deu uma série de esculachos em “desinformadores” (quem pode duvidar que, naquele momento, e com aquela postura, não o eram?). Teich, pressionado para se declarar por “isolamento vertical” ou “horizontal, foi claro e simples – sou a favor de tratar cada caso com a devida dose de racionalidade, variando a solução de acordo com o problema específico apresentado. Nada de açodamento, nada de pular em cima das conclusões do Imperial College, da pesquisa do NEJoM, nada. Apenas ir acumulando os dados e ir comparando com os fatos diante de nós. Nem Bolsonaro nem Dória – bom senso aplicado a cada caso.
Afinal, “para problemas complexos existe sempre uma solução clara, simples, e invariavelmente, errada”, como disse H.L. Mencken…